Perguntas & Respostas
26-09-2016

Verônica Machado. “A profissão de jornalista nunca esteve tão viva, democrática e cheia de possibilidades”

LUÍS PAULO RODRIGUES

Verônica Machado, 26 anos, brasileira, diplomada em Jornalismo pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), jornalista em Brasília, antiga repórter do prestigiado “Correio Braziliense”, cuja redação abandonou ao fim de três anos para participar ativamente na transformação do jornalismo.
Para isso, criou projetos digitais, através dos quais ajuda outros jornalistas a criarem os seus próprios projetos profissionais. Dá cursos e palestras. E assim ganha a vida. Foi com esse propósito que fundou o site Jornalista 3.0 e o projeto Realize, para que os jornalistas possam realizar-se como jornalistas e produtores de conteúdos na era digital. Porque, como diz, em entrevista ao blog COMUNICAÇÃO INTEGRADA, “o que está em crise são os modelos de negócios do jornalismo, mas a profissão nunca esteve tão viva, democrática e cheia de possibilidades”.
Esta entrevista é, por isso, um foco luminoso para muitos jornalistas que procuram um novo rumo na carreira. Foi por isso que entrevistei Verônica Machado, cujo trabalho acompanho com atenção há vários meses. “Falta dinheiro no jornalismo tradicional porque o modelo de negócio não funciona mais, a economia mudou, os leitores mudaram e ninguém faz nada para mudar essa estrutura falida”, diz, com desassombro. Otimista quanto ao futuro, lembra que, ao contrário do passado, hoje, “o lugar do jornalista é no mundo e ele carrega a redação dentro bolso”.

COMUNICAÇÃO INTEGRADA (CI) – Sendo brasiliense, qual é a sua opinião sobre o jornalismo que se faz atualmente em Brasília e no Brasil, nomeadamente o jornalismo político?
VERÔNICA MACHADO (VM) – Acredito que o jornalismo que se faz aqui em Brasília é o mesmo de qualquer parte do Brasil. É claro que aqui é o centro político do país e os profissionais dessa área voltam os olhares para o que é decidido no Congresso Nacional [Obs. – Órgão constitucional que exerce as funções do poder legislativo de âmbito federal]. Mas eu prefiro sempre pensar em um sentido mais amplo do jornalismo e percebo o mesmo cenário em outros lugares: é um jornalismo que está perdido e quer adaptar-se à era digital. É, principalmente, um jornalismo que começa a abrir um debate sobre a sua real função para a sociedade neste momento tão delicado de transição de conceitos.

CI – No seu blog Jornalistas 3.0 define-se como “uma jornalista que corre atrás do que quer”. Como é que um jornalista atual pode correr atrás do que quer, estando limitado pelos prazos cada vez mais apertados da produção informativa e trabalhando em redações deficitárias em meios humanos balizadas pela concorrência e pela sacrossanta agenda mediática?
VM – Um jornalista que corre atrás faz isso em qualquer circunstância. Correr atrás tem a ver com atitude, não com a profissão. Correr atrás significa ser o protagonista da própria história. Ao ter um objetivo claro e específico onde quer chegar, traça uma estratégia de vida e assume uma postura de realizar atividades que o façam chegar lá. Se, para alcançar um objetivo, é preciso passar pelos prazos limitados e redações degradantes, é justo. Se você decidiu que quer fazer um jornalismo diferente do praticado nas redações, ter mais autonomia e embarcar no empreendedorismo, por exemplo, talvez o caminho não seja esse. Em resumo: correr atrás significa atrás de uma coisa bem definida. O que muita gente não tem. A falta de tempo ou o modelo de trabalho das redações não impedem as pessoas de realizarem sonhos, são só desculpas para as pessoas continuarem na zona de conforto. O que faz a diferença é decidir e fazer acontecer.

CI – Fundou o projeto Jornalista 3.0, para ajudar jornalistas a “encontrarem caminhos na era digital e realizarem os seus sonhos” através da Internet. Como é que surgiu essa ideia e de que forma é colocada em prática?
VM – Eu fui repórter do “Correio Braziliense” durante alguns anos. Depois de uma crise existencial, eu pedi a demissão, vendi tudo o que tinha e fui estudar fora. Quando voltei, decidi que precisava encontrar o meu jeito de fazer jornalismo. Por isso, criei um projeto chamado Vidas Contadas, onde produzo vídeos com histórias incríveis de pessoas comuns (www.vidascontadas.com). O projeto fez-me muito feliz com a profissão. Mas eu olhei para o lado e vi que os meus colegas jornalistas estavam frustrados, desmotivados e sem propósito. E eu precisava fazer alguma coisa. Continuei a estudar o novo cenário da profissão e especializei-me em marketing digital. Então pensei: por que não compartilhar o que tenho aprendido? Foi assim que criei o Jornalista 3.0, um blog para trocar ideias e ajudar jornalistas a enfrentarem esse momento de transição de era. Além do conteúdo do blog, eu faço séries de webinários para debate, tenho o Realize – Programa de Protagonismo Digital para Jornalistas (www.jornalista30.com.br/realize) e estou organizando o Congresso Online de Jornalismo 3.0. Todas as minhas ações são voltadas para o objetivo de manter viva a chama do Jornalismo, com adaptações importantes aos meios digitais, e apresentar novas possibilidades na nossa área.

CI - Desenvolve iniciativas voltadas para a promoção do novo jornalismo e ganha dinheiro com elas? Por exemplo, o que ganha com o projeto Vidas Contadas? E com o Realize? Como estamos falando de serviços prestados, como é que você ganha a vida com esses serviços?
VM – Estou há quase quatro anos como pessoa jurídica, longe de uma redação. Ganho dinheiro com os meus projetos. No começo, comecei com “freelancer”, enquanto construía as minhas ideias. O projeto Vidas Contadas ficou de pé depois de ter feito um “crowdfunding”, um financiamento coletivo. Houve 37 pessoas que investiram dinheiro para que eu continuasse. Depois, comecei a fazer palestras profissionais. Hoje, tenho um contrato de uma temporada de vídeos com a Devry Brasil. Em paralelo, construí o Jornalista 3.0, onde tenho como produto o Realize. É um curso pago. A última turma reuniu 70 participantes.

CI – Podemos dizer que o projeto Realize é uma espécie de “coaching” para jornalistas á procura de um rumo na sua carreira?
VM – Não. Somos uma comunidade e acompanhamos o trabalho uns dos outros em uma grande rede de jornalistas que se ajudam. Eu sou uma pessoa que resolveu compartilhar o que sabe e aprender muito na interação com os participantes. O Realize é um programa dividido em cinco módulos, onde eu ajudo jornalistas a tirarem projetos do papel. Desde a conceção da ideia até à colocação de um site no ar ou à utilização das redes sociais para impulsionamento dos seus projetos. Inclusive, posso ajudar a identificar possibilidades de financiamento desses projetos. Não faço “coaching” para jornalistas, nem sou contultora. Sou alguém que compartilha e valoriza a troca de informações de igual para igual.

CI – Essas ideias têm dado certo? A Verônica tem acompanhado o seu desenvolvimento?
VM – O programa Realize tem o módulo 1, chamado Reflita. É quando a gente trabalha o “mindset” do jornalista 3.0, as suas ideias, o seu propósito, a sua mentalidade. De seguida, o módulo 2, intitulado Comece, quando a gente coloca a página no ar e decide quanto à contratação de domínio, à hospedagem, ao design, etc. Depois, vem o módulo 3, o Impulsione, em que exploramos técnicas de marketing e de gestão de redes sociais para impulsionar o projeto. Depois, o módulo 4, Monetize. Quando estudamos possibilidades de monetização de produção de conteúdo na Internet. E o módulo 5, Transforme. Quando fechamos o ciclo ao ouvir e conversar com pessoas que já estão no mercado sobre conhecimentos específicos. O curso tem duração de 2 meses. Mas o Realize é um projeto aberto, que não tem fim.

CI – A maior parte dos projetos são da área do jornalismo?
VM – Sim. A maior parte dos projetos são jornalísticos porque os participantes são jornalistas. Mas não é uma obrigação. Um dos projetos é o Clube do Português, do Pedro Valadares, aluno do Realize (www.clubedoportugues.com.br). Outro projeto que nasceu no Realize é o Atitude Afro (www.atitudeafro.com.br), de Evillyn Regis. Você pode conhecer alguns dos participantes e os projetos no site do projeto, em http://jornalista30.com.br/realize-depoimentos.

CI – O jornalismo está em crise ou está em transformação?
VM – Definitivamente, em transformação. E a transformação dói. O que está em crise são os modelos de negócios do jornalismo, mas a profissão nunca esteve tão viva, democrática e cheia de possibilidades. Inclusive, todas as profissões que fazem o papel de intermediários passam, fortemente, por essa transformação: agências de viagem, cooperativas de táxi e, claro, redações de jornais. O momento pede que os jornalistas parem de se ver apenas como intermediários da informação, para aceitarem a digna – e até mais interessante – função de produtores de conteúdo.

CI – Assistimos ao fenómeno da multiplicação dos produtores de informação. Antigamente havia poucos jornais, poucas rádios e poucas televisões que informavam muita gente. Agora temos muitos jornais, muitos portais digitais, muitas televisões, rádios, revistas, blogues, etc. Cada um de nós é um jornalista em potência, no sentido em que pode fazer notícias, vídeos e fotografias, e pode divulgar estes conteúdos em grande escala. Este novo cenário fez a informação perder valor acabando com o jornalismo como negócio?
VM – Para mim, essa democratização da informação e produção de conteúdo é um ponto muito positivo. Se todos nós somos um jornalista em potência, significa que a profissão precisa ser repensada e não acredito que essa disseminação vai acabar com o jornalismo como negócio. O negócio já está falido. Somos nós, jornalistas, que devemos encontrar o diferencial da nossa profissão, que é servir a população, ajudar o público a alcançar um objetivo, produzir conteúdo que realmente altere a vida de alguém para melhor. Está na hora de parar de culpar as tecnologias, as pessoas, os governos ou qualquer outro setor por um problema que é de nossa responsabilidade.

CI – Temos também as marcas de consumo produzindo produtos jornalísticos. O que pensa do fenómeno do jornalismo de marcas? Em que medida é que o jornalismo de marcas pode contribuir para a fusão do jornalismo com o marketing?
VM – Marketing é entregar o produto certo a quem precisa dele. Jornalismo é entregar a informação certa a quem precisa dela. É muito bom ver marcas encontrando o marketing de conteúdo como alavanca de produtos. Eles entenderam que conteúdo relevante é fundamental para obter confiança e credibilidade do público – assim como em um jornal. Qual o motivo desse “ciúme”, agora, por parte do jornalismo? O jornalismo convencional já fazia isso muito antes com os publieditoriais ou os cadernos especiais comprados por anunciantes. Jornalismo e marketing são diferentes, mas podem ser bons aliados de agora em diante.

CI – Se as marcas apostam em bons meios de comunicação, todos eles com conteúdos atrativos e convidativos ao consumo e ao lazer, e se há cada vez menos dinheiro para o jornalismo tradicional, quem irá cuidar da informação de interesse público e da polemização das grandes questões políticas e sociais? Quem irá tratar jornalisticamente dos casos de corrupção, das questões ambientais, da segurança pública, da manutenção dos espaços públicos, etc.?
VM – Se as marcas estão apostando em conteúdo que ajuda um determinado público, que notícia boa! Que ótimo! Significa que o jovem da favela pode ter um blog e relatar o que acontece por lá, até com mais credibilidade do que um jornalista faria. Que bom que a liberdade de expressão chegou como uma avalanche com a Internet. E, claro, que as marcas também perceberam isso. Falta dinheiro no jornalismo tradicional porque o modelo de negócio não funciona mais, a economia mudou, os leitores mudaram e ninguém faz nada para mudar essa estrutura falida. E mais: qual é a novidade mesmo? Quem sempre tratou “jornalisticamente dos casos de corrupção, das questões ambientais, da segurança pública, da manutenção dos espaços públicos”, como você refere na pergunta, foram grandes empresas de comunicação privadas e com interesses políticos. O jornalismo não é vítima, tem a responsabilidade de repensar o que tem sido feito e o quanto tem, de facto, servido à população. O jornalista pode ser uma marca, o jovem da favela pode ser uma marca, todo mundo pode ser. Defender uma ideia, um conceito e uma bandeira. Afinal, a imparcialidade sempre foi inalcançável.

CI – Como vê, então, o jornalismo do futuro?
VM – Vejo o jornalismo dando lugar à produção e curadoria de conteúdo de qualidade, com democracia, segmentação, interação e participação ativa do público.

CI – Um jornalista com o seu computador e o seu smartphone pode fundar e administrar um jornal?
VM – Claro. Pode estar em qualquer lugar do mundo com Internet e fazer sua notícia, a sua denúncia. Pode contar uma história. E é essa a tendência. Para quê estar entre quatro paredes de um escritório se você pode conversar diretamente com o dono do jornal por Skype? Escrever e fotografar pelo celular. Publicar em diferentes meios e plataformas. Fazer o próprio espaço na Internet, trabalhar em rede com parceiros, empreender... O lugar do jornalista é no mundo e ele carrega a redação dentro bolso.

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